Frida Kahlo as cores da dor
Cristina Agostinho

                                                "Yo escribo con mis ojos."
                                                                               Frida Kahlo                                              
                                                                       
                         Para Sílvia, minha irmã, que
                                                     tem pincéis mágicos no coração.



Solferino: el más vivo y antiguo.

             Eu, Magdalena Carmen Frida Kahlo y Calderón, sou do México. Ou melhor, sou o México. Arte e sangue. Alegria e dor. Esperança e desespero. O México da civilização asteca, com seus belos monumentos, seus deuses e rituais sangrentos. O México do conquistador Hernán Cortés e seu vice-reinado renascentista, erguido sobre a destruição e o terror. O México de Pancho Villa e Zapata. Dos deserdados da terra que atravessaram o país cavalgando o sonho da igualdade mestiça. Tempo de pilhagens e chacinas nos campos e nas cidades. Tempo de redescoberta das artes populares.
            Nasci na Casa Azul de Coyoacán, nos arredores da cidade do México, numa manhã de julho de 1907. Filha de pai alemão e mãe mexicana. Assim diz minha certidão de nascimento. Nasci em 1910, assim digo eu. Sou filha da Revolução Mexicana.
            E também sou filha da paz. Paz,do alemão Friede . Frieda, assim me batizaram. Frida, assim me batizei. Frida Kahlo.

                                                                                               
Verde: luz tibia y buena.

            Criança, eu já era duas Fridas.
Aos seis anos inventei uma amiga. Para nos encontrarmos, soprava na vidraça do meu quarto e, com um dedo, desenhava no bafo uma porta. Por essa porta, saía quase voando até uma leiteria onde havia uma tabuleta com a palavra PINZÓN em letras bem grandes. Pelo O de PINZÓN eu deslizava até o centro da terra.
            Minha amiga sempre estava lá me esperando. Era silenciosa, gostava de dançar e ria muito. Enquanto ela dançava eu lhe contava meus segredos. Com essa amizade mágica descobri a alegria.
            A dor, descobri pouco depois. Uma manhã acordei sentindo agulhas fisgando minha perna direita. Levantei-me e não conseguia andar. Gritei tanto que despertei minha mãe. Poliomielite, disse o médico. Meses na cama, um pé atrofiado, uma perna mais fina e mais curta do que a outra, botas ortopédicas.
            Quando a dor física entrou pela primeira vez em meu corpo, veio acompanhada de outra dor:
Frida-perna-de-pau! Perna-de-pau-pau-pau!
Assim gritavam os meninos da vizinhança, da escola, da rua.


Azul cobalto: eletricidad y pureza. Amor.

            Um boné fez-me esquecer as botinas e o desprezo que elas representavam.
            Em 1922 entrei para a Escola Preparatória Nacional, a mais importante do México, onde estudavam os futuros intelectuais, artistas e cientistas. Lá  juntei-me à turma dos Cachuchas , famosos por seus bonés de malandros, sua insolência e constantes provocações.
            Nós, os Cachuchas , fazíamos o que nos desse na telha. Enquanto não chegava a glória futura, corríamos e gritávamos pelos corredores da escola. Pregávamos peças nos professores e nos colegas, plantávamos bananeira diante das estátuas solenes, subíamos e descíamos dos bondes sem pagar. Saíamos pelas ruas e praças em busca de bugigangas, que eu colecionava dentro da mochila. Nos meus cadernos escolares, colecionava caricaturas e ilustrações coloridas com as cores do atrevimento.
            Entre uma brincadeira e outra, descobri o amor. Ele tinha olhos negros, era sensível e terno. E o mais brilhante dos Cachuchas. Alejandro, para os outros. Alex, para mim. Amor-amizade, mais do que amor-paixão, nele se confundiam a Frida-menina e a Frida-mulher.

                                                                       
Magenta: ¿Sangre? pues ¡quién sabe!
           
            É mentira que a gente se dá conta da dor no momento da tragédia. Ou que choramos. Não derramei uma única lágrima. Disso me lembro bem.
            Tudo aconteceu na esquina em frente ao mercado de San Juan. Bem em frente. Foi um choque estranho. Sem violência. Surdo. Lento. O bonde vinha devagar, mas não freou. Bateu no meio do ônibus, que foi se dobrando em meia-lua, enquanto era lentamente arrastado. Janelas quebradas, estilhaços, gritos por todo lado. Minha primeira reação foi procurar o bilboquê colorido que havia comprado naquele dia e caiu do meu colo. Não percebi que um pedaço de corrimão tinha trespassado meu corpo como a espada do toureiro atravessa o touro.
            No meio da tragédia, o assombroso. Alejandro, que havia sido lançado para fora do ônibus, ainda zonzo me procurou.  Deparou com um quadro que nenhum pintor jamais sonhou. Frida-nua, toda ensangüentada e coberta de ouro. Alguém no ônibus levava um pacotinho de ouro em pó que se rompeu com o choque. As pessoas à minha volta, diante daquela maravilha, exclamavam:
- A bailarina! Olhem! A bailarina!
            Nesse dia meu corpo se partiu em muitas Fridas.


Amarillo: locura, enfermedad, miedo.

            Dor, desespero, lágrimas. Medo. Muito medo. Cirurgias sem fim, meses no hospital, torturantes coletes de gesso. Minha sobrevivência, um milagre.
            Não foi difícil habituar-me ao sofrimento. Difícil foi acostumar-me à separação do meu Alex querido. Para afastá-lo de mim, a Frida aleijada, seus pais o mandaram estudar na distante Alemanha. Tão distante que nossas cartas levavam meses para chegar.
            Do sofrimento à solidão. Da solidão à quase-loucura. Presa ao leito, meu único refúgio, a pintura. Um grande espelho suspenso no dossel da cama.  Eu frente a frente com a Frida-modelo.
            O primeiro quadro, um presente para Alejandro. Um auto-retrato  clássico. Meu Botticelli, como gostava de chamá-lo. Uma Frida-inteira, etérea, olhando em direção a um futuro que não sabe se virá. O mar azul ao fundo, a vida sonhada. Na vida real eu navegava em águas estagnadas e cinzentas.
            Refletida no espelho, pintei todas as Fridas que vivi ou sonhei viver desde então.

                                                                                                                                                                                 
Amarillo verdoso: más locura y misterio.

Diego, princípio.
Diego, construtor.
Diego, minha criança.
Diego, meu namorado.
Diego, pintor.
Diego, meu amante.
Diego, meu marido.
Diego, meu amigo.
Diego, minha mãe.
Diego, meu pai.
Diego, meu filho.
Diego, eu.
Diego, universo.

             O elefante e a pombinha. A borboleta e o sapo-rã. A fragilidade e a montanha. Diego e eu. Eu e Diego. O encontro dos vulcões Popocatépetl e Ixtaccíhuatl. Diego de Rivera, o segundo acidente em minha vida. Me atropelando com seu turbilhão de cores, surpresas e decepções. Com sua cara de sapo. Com sua sedução. Nos apaixonamos e nos casamos. Duas vezes.
             Ninguém entendia. Ele, o gigante da pintura moderna, homem que conhecera muitos países, que vivera muitas vidas e amara muitas mulheres, apaixonado pela Frida-manca que podia ser sua filha.
Velho, gordo, feio. Boêmio, comunista, ateu. Infiel. Nada disso me importava. Por ele troquei minhas roupas masculinas e meu jeito de menino insolente pelas anáguas de rendas, saias longas, penteados com fitas coloridas, colares e xales vistosos.
            Para agradar Diego, me transformei na mais mexicana das mexicanas. Para perpetuar Diego dentro de mim, quis ser Frida-mãe, a Frida que nunca pude ser.

Azul marino: distancia. También la ternura  puede ser de este azul.                                                                                                                                    
            Diego e seus murais me levaram ao novo e ao velho mundo. São Francisco, Nova York, Detroit, Paris. Em busca de um sonho da adolescência, conheci cidades e pessoas diferentes. Encontrei uma realidade mais espantosa do que a viagem sonhada. Convivi com a arrogância daqueles que só se alimentavam da ambição e das aparências. Eu, que sempre desprezei o orgulho e nunca me interessei pela fama, me senti perdida num labirinto cinzento de arranha-céus e vaidades.
            Sentia falta das cores do meu México querido, do seu calor humano. Do sabor de suas comidas. Dos tacos, das tortillas e dos feijões fritos. Do cheiro forte de azeite requentado. Do burburinho das mulheres indígenas vendendo quinquilharias nas calçadas, os filhos pendurados nos xales.  Das canções dos mariachis, em seus trajes festonados e os violões sobre as panças proeminentes. Sentia falta até dos mendigos da Praça do Zócalo pedindo uma esmolinha pelo amor de Nossa Senhora de Guadalupe.
         Sentia falta, acima de tudo, de minha família e da casa azul de Coyoacán. Do aconchego da Frida-criança.


Verde-hoja: hojas, tristeza, ciencia.

            Frida-demônio. Assim era a Frida-filha, segundo meu pai. E eu me pergunto se até mesmo um demônio mereceria este corpo partido, torturado, desintegrado. Este calvário de vinte e nove anos de dor, trinta e duas cirurgias, oito coletes ortopédicos, uma perna amputada.

Pés, para que os quero, se tenho asas para voar? Se tenho meus pincéis para pintar?  A tinta, a forma, a cor, meu sangue. O papel, o lápis, minha mão. A carícia das telas. Os dedos do vento.  Quem diria que as manchas vivem e ajudam a viver?

            Meu nascimento.  Acidente. Corpo sem cabeça, com coração vermelho. A mesa ferida. Árvore da esperança, mantém-te firme. A coluna partida. Lembrança da ferida aberta. Hospital Henry Ford. Uns quantos furinhos. Pensando na morte.  Sem esperança.
            Meus quadros, minha vida. Meus medos, meus desejos, minhas frustrações. Minha solidão em chamas. Meu grito de dor. 
            Ah, se eu pudesse fazer o que me desse vontade. Cuidaria das flores todos os dias, pintaria o amor, a ternura. Sonho, sonho, sonho.Vou morrer de sonhos. Frida-sonho.

                                                                                                                                                                                     Negro: nada es negro, realmente nada.

            Frida-bela-do-baile.  A derradeira Frida. Não o fim das Fridas. Frida- princípio.
Nasci no México, morte é origem. Sem ela não estaríamos aqui. Sem ela não existiríamos. Seja qual for o nome que lhe damos - Mula Dentuça, Torrada, Desgraçada, Cadela Pelada, Bela do Baile – a morte sempre foi nossa divertida companheira. Por isso nunca a temi. Tentei, sim, algumas vezes, apressar nosso reencontro. Para fugirdo sofrimento, do desespero, de mim mesma.
            Agora que já não sinto mais dores, a Bela do Baile me convida para dançar. Ela é minha amiga alegre e silenciosa. Pelo O de PINZÓN deslizo suavemente ao seu encontro.






La Peregrina Magazine (c) Todos los Derechos Reservados, 2008-09